BrainScience entrevista Sergio Brasil, médico neurossonologista e pesquisador do Hospital das Clínicas da FMUSP, na área de cuidados neurocríticos e estudo de autorregulação cérebro-vascular. Médico integrante do Comitê Científico da brain4care Brasil, no desenvolvimento de técnica não invasiva de avaliação da complacência cerebral, autor do artigo “Obesity and its implications on cerebral circulation and intracranial compliance in severe COVID-19‐19”, publicado na revista Obesity Science and Practice.
Como a obesidade pode afetar e comprometer a complacência intracraniana?
Atualmente sabemos que as pessoas com excesso de peso podem desenvolver algumas complicações referentes ao trânsito do líquor, líquido produzido no centro do cérebro e que corre até a espinha e é reabsorvido. O problema no trânsito do líquido pode gerar um acúmulo e, consequentemente, uma certa pressão. Essa pressão vai repercutir sobre o tecido cerebral em si.
Como a dificuldade no trânsito do líquor reflete ao longo dos anos?
As pessoas têm queixa mais frequente de dores de cabeça e alguns problemas visuais. Às vezes, muitos pacientes são encaminhados para o neurologista porque é encontrado um papiledema, que é um inchaço da porção posterior do olho. O oftalmologista manda para neurologia fazer investigações adicionais. Mas é difícil estudar e garantir o mecanismo, exatamente porque a única forma de mensuração direta da pressão é furando a cabeça, e isso então é um empecilho.
Por que esses estudos são tão difíceis de serem realizados?
Para ter certeza sobre a pressão dentro do crânio dispomos de um método não ético de invadir o crânio e colocar um cateter dentro da cabeça do indivíduo. Ou medir de forma indiretamente a pressão intracraniana é fazer uma punção lombar. Por meio desses métodos e evidências clínicas, temos uma condição chamada de pseudotumor cerebral ou hipertensão intracraniana idiopática. Ainda não se sabe a causa dessa doença, mas 95% dos pacientes com esse problema são obesos. Acreditamos que é uma condição crônica e que esteja ligada ao acúmulo de líquido na cabeça. Se você faz as imagens, não vê grande diferença. Mas as funções liquóricas mostram uma aparição de abertura aumentada. As pessoas não terão complicações neurológicas imediatas, mas seguem convivendo com uma pressão um pouco aumentada dentro da cabeça. Isso vai repercutir ao passar dos anos.
Quais outros mecanismos relacionados à obesidade podem apontar o aumento da pressão intracraniana?
Um outro mecanismo está ligado ao sono do paciente obeso, a famosa apneia do sono – pausas respiratórias no decorrer da noite. Muitas vezes, o obeso não percebe e apresenta uma condição pobre do sono. Isso repercute muito na disposição, pois o sono não é reparador. Ele acorda sentindo que não dormiu nada. Só que essa situação de circulação pobre durante o sono, ou seja, a oxigenação pobre do sangue durante o sono por causa da hiperventilação, provoca também um transtorno circulatório que pode fazer com que o volume sanguíneo cerebral seja maior do que o habitual, isso pode estar relacionado ao aumento da pressão intracraniana na obesidade.
No caso da COVID-19, o que o estudo apontou ?
Temos que lembrar que o propósito do estudo era exploratório, com o objetivo de avaliar complicações neurológicas da COVID-19. Constatamos que os pacientes obesos que chegavam na UTI desenvolveram doenças mais severas. Dos 50 pacientes da amostra do estudo, metade eram obesos, lembrando que a prevalência da obesidade no Brasil é de 20%, isso chamou atenção: havia uma prevalência maior de pacientes COVID-19 obesos que chegavam na UTI. Além disso, foi difícil destrinchar as ocorrências, pois devido a gravidade dos casos 60% dos pacientes morreram.
Como foram realizadas as avaliações dos pacientes?
Usamos duas técnicas para avaliar o cérebro dos pacientes que conseguiram evoluir para uma ventilação espontânea, o doppler transcraniano avaliou a circulação cerebral e o brain4care a complacência intracraniana. Avaliamos a circulação cerebral e a complacência dos pacientes em duas etapas: a primeira durante os três primeiros dias a partir da entubação e a segunda também num período de 72 horas após a retirada da ventilação mecânica ou realização de traqueostomia.
Percebemos que os transtornos de circulação foram presentes em praticamente quase toda amostra. Era difícil dizer por meio da circulação cerebral, quem estava indo bem e quem não estava. Mas foi bastante significativo os testes estatísticos e as alterações constatadas na complacência intracraniana com a utilização do brain4care. As alterações na complacência foram muito mais presentes entre os obesos e naqueles que evoluíram mal. Os pacientes tiveram em média 50 dias de internação, pelo menos 35 em UTI, depois alguns dias de enfermaria.
Em relação à idade, houve alguma constatação específica?
Após uma análise multivariada, comparando a gravidade da doença, observamos que pacientes obesos e com mais idade, tinham mais chance de ter transtorno de complacência. Isso pode até fortalecer a nossa suspeita de que os idosos também têm uma dificuldade maior no trânsito líquor.
De que forma o comprometimento da complacência agrava ou pode agravar a situação dos pacientes com COVID-19?
O paciente COVID-19 vai para a UTI devido às complicações no pulmão. A severidade da doença se dá normalmente por acometimento pulmonar – a síndrome de angústia respiratória. Esse paciente tem dificuldade para a troca gasosa. Com isso, ela retém o gás carbônico na circulação. O gás carbônico se dissocia muito rápido do nosso sangue, aumentando a acidez do sangue. Essa acidez é um potente vasodilatador, ele abre a circulação cerebral. Isso provoca a perda da autorregulação. O cérebro entende como uma necessidade e para se adaptar aumenta o fluxo de circulação. Quando o paciente está sob ventilação mecânica, o médico intensivista tem um monitor que dá os parâmetros vitais do mesmo: pressão, frequência cardíaca, frequência respiratória, saturação e até a fração de gás carbônico que o paciente está expirando. Ele vai se adequando, mas o paciente está sedado e não há um parâmetro clínico, ele não consegue avaliar e conversar com o paciente, tocar no paciente para entender o que está acontecendo.
Com isso, o cérebro do paciente fica à deriva. E só no retorno do paciente é que você descobre que ele não estava bem conduzido, pelo menos na demanda cerebral. Todos os pacientes que eu constatei que o fluxo sanguíneo cerebral estava insuficiente, morreram. De acordo com os monitores, os parâmetros estavam bons.
A partir da constatação de que é preciso monitorar os padrões cerebrais, como as ferramentas podem auxiliar na monitorização não invasiva do cérebro?
Entendemos que era uma situação mascarada e passava despercebida. Com o uso de ferramentas que não trazem riscos para o paciente essa situação pode ser revertida. O doppler transcraniano mostra o fluxo sanguíneo, o eletroencefalograma mostra a atividade elétrica, tem BIS (Índice Bispectral) que é uma fitinha que aponta o grau de sedação do paciente, tem NEAR (infrared spectroscopy, NIRS) que dá a oxigenação cerebral e agora tem o brain4care que é o método que dá um parâmetro, te diz indiretamente o equilíbrio entre as 3 estruturas dentro do crânio (líquido cefalorraquidiano (líquor), o sangue e o cérebro). Se essas estruturas estão em equilíbrio, ele te dá uma onda fisiológica. Se essas estruturas não estão em equilíbrio, a onda vai ter suas alterações. É um parâmetro a mais, com uma grandeza que não tínhamos anteriormente. Hoje temos essa possibilidade. Quando você entende a curva pode fazer um manejo da pressão do paciente, da pressão arterial que eu vou trabalhar, do volume que eu vou dar. Dá ventilação que eu vou trabalhar, a sedação que eu vou trabalhar e tentando equilibrar até essa onda de forma mais fisiológica e assim você tem maior chance de ter um resultado melhor.
Como a pandemia colaborou com as pesquisas com o brain4care?
A pandemia nos mostrou que não é só na neurologia que existe espaço para o sensor da brain4care. Na verdade, o maior espaço está fora dela. Na neurologia , quando você tem um paciente com uma doença grave no cérebro, você trabalha de forma agressiva, de acordo com a necessidade. Mas nas outras doenças não há como saber a repercussão daquela doença sobre o cérebro. A partir das constatações do estudo, começamos a esclarecer algumas dúvidas que estavam encobertas. E principalmente, documentando com as publicações. O próximo passo é pensar no que fazer para melhorar e reduzir os agravos com o cérebro.