O estado grave dos pacientes em unidades de terapia intensiva (UTI) demanda monitoramento constante de seus sinais vitais, de modo a se identificar alterações que possam sinalizar uma piora em seu quadro. Em entrevista ao BrainScience, Carlos Nassif aponta que o acompanhamento da saúde cerebral, e especialmente da complacência intracraniana, a capacidade natural de regulação da pressão intracraniana, é fundamental para melhorar as chances de sobrevida dos pacientes.
Carlos Eduardo Nassif Moreira é médico intensivista e atua desde 2001 no Hospital 9 de Julho, em São Paulo (SP). Atualmente, é coordenador geral das unidades de terapia intensiva do hospital, além de atuar no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Desde 2017, acompanha o uso em UTIs do Hospital 9 de Julho de um sensor não invasivo para monitoramento da complacência intracraniana desenvolvido pela brain4care, empresa brasileira especializada no segmento.
BrainScience: De que maneiras o Hospital 9 de Julho tem utilizado esse método não invasivo de monitoramento de complacência intracraniana? O uso é direcionado a doenças e situações específicas?
Carlos Nassif: O sensor é bastante útil na individualização da pressão de perfusão cerebral para um momento e situação específicos que cada paciente vivencia. Inicialmente experimentamos o uso do sensor nas doenças neurológicas primárias, pois as doenças sistêmicas graves afetam o cérebro do mesmo modo como também afetam outros órgãos. Uma das causas frequentes de mortalidade em UTI é o delirium, confusão mental no pós-tratamento de qualquer patologia grave. No delirium coativo, por exemplo, aquele em que o paciente sai da fase aguda da doença e fica apático, não acorda, muito sonolento, interage pouco, o paciente se reabilita mal, come mal, engasga com frequência, torna-se dependente, contrai infecções com maior frequência e acaba morrendo. Não consegue se reabilitar. Agora estamos usando o equipamento como uma ferramenta para diagnóstico diferencial de delirium, como um sinal vital a mais. A ideia é essa: num futuro próximo, assim como já temos o sinal da pressão arterial, sinal da frequência cardíaca ou sinal da saturação periférica de oxigênio, teremos o sinal da complacência cerebral.
Já houve alguma situação em que o monitoramento de complacência intracraniana ajudou a antecipar uma complicação que o paciente teria e nesse caso intervir precocemente e evitar uma situação mais grave como um AVC, por exemplo?
Tem várias situações aqui em que houve mudança de rumo com a ajuda do equipamento. Nelas o monitor foi decisivo em tomadas de decisão e, com isso reduziu danos em casos de traumatismo craniano, septicemia, Covid-19… É útil em qualquer patologia que possa causar dano cerebral, direta ou indiretamente. Temos como exemplo o choque séptico, em que há uma redução de irrigação de sangue nos tecidos do corpo, incluindo o cérebro. Se conseguimos, na fase aguda da sepse, otimizar a pressão de perfusão cerebral, com certeza é possível mitigar um pouco do dano que esse quadro causa no cérebro de qualquer paciente, seja jovem ou idoso. Mesmo um paciente que tenha tido esse problema e está em reabilitação requer monitoramento da pressão de perfusão cerebral, pois a situação muda com frequência.
Isso não é possível com métodos invasivos, certo? Há um novo campo que se abre ou esse tipo de monitoramento já era feito antes do sensor não invasivo?
Os monitoramentos invasivos medem apenas a pressão intracraniana. Mas a complacência cerebral é algo mais importante que a pressão intracraniana em si. Todo paciente com aumento da pressão intracraniana apresenta alteração na complacência, tem a complacência comprometida. Mas nem todo paciente com pressão intracraniana normal está com níveis normais de complacência. Nesses casos, os métodos invasivos de monitoramento não são eficazes para identificar problemas. Sabemos que problemas na complacência cerebral são o início de algo muito sério que vai levar ao aumento da pressão intracraniana. A complacência é um dado importante: é um sinal mais precoce de que algo muito danoso está acontecendo no cérebro, antes da própria pressão intracraniana aumentar. É necessário se antever ao momento que pode ser ruim, por isso ter o equipamento brain4care é um benefício.
Como se monitoraria a complacência intracraniana sem um sensor não invasivo?
É impossível. Há um outro método não invasivo, denominado doppler transcraniano, que possui curva de aprendizado longa, demorada, requer um equipamento mais caro e capacitação profissional específica. Na UTI, onde as coisas são muito dinâmicas, é difícil ter a todo momento alguém disponível pra fazer doppler transcraniano e avaliar. Na realidade brasileira isso é praticamente impossível. Com o sistema brain4care, colocar o sensor e fazer uma leitura é simples. Isso pode ser feito pelo enfermeiro, fisioterapeuta, médico residente. Os dados são gravados e depois o médico responsável pode recebê-los e ajudar a interpretar a situação, oferecer um direcionamento ou mesmo acompanhar alguns testes. A tecnologia é relativamente barata, o aprendizado para sua operação não é tão difícil e a execução da leitura pode ser feita por qualquer pessoa minimamente treinada.
O que acha que falta para a complacência craniana ser considerada um sinal vital da mesma forma que a pressão arterial hoje, algo que as pessoas medem em casa, de uma forma muito barata e acessível? É uma questão tecnológica ou uma questão de cultura médica?
Eu, que estou trabalhando com isso há mais de quatro anos, já acredito nisso. Porém, fazer a comunidade científica e médica acreditar exige uma série de publicações que comprovem essa eficácia e divulgação da experiência clínica. Toda tecnologia nova deixa as pessoas um pouco receosas. Eu mesmo, quando fui convidado para conhecer o equipamento da brain4care há cinco ou seis anos, não acreditava que fosse possível fazer o que ele faz, não acreditava no potencial que tem. Mas fomos experimentando e ele revelou ter uma aplicabilidade muito maior do que se falava na época. Como podemos usar isso para qualquer patologia que atinge o cérebro, seja de maneira primária ou secundária, isso passa a ser muito importante para a redução do tempo de internação, do custo hospitalar, que hoje é muito alto, assim como redução de morbidade. Isso melhora a qualidade de vida do paciente e reduz custos.